sexta-feira, 30 de setembro de 2016

O Assassinato da Alma



Antes mesmo de nascer, já há um desejo que nos aguarda. Muitas vezes já há um nome e expectativas. É comum ver o pai decidindo pelo filho qual o time de futebol que ele deverá torcer, por exemplo. Esse desejo sustentará fantasias e identificações infantis. É através do desejo dos pais que a criança poderá cavar um espaço para seu próprio desejo na vida. Como a criança é falada, isso a identifica.

No conto, O Assassinato da Alma, David Mamet nos apresenta um discurso materno que mata. O título é pungente e preciso. Para que a alma sobreviva e, mais importante, floresça, a sua existência deve ser tomada como uma coisa boa, válida, celebrada.

O conto se inicia com a mulher levantando a questão do merecimento do menino, desqualificando-o. Esse é o avesso do discurso de uma mãe suficientemente boa. A mãe suficientemente boa fará com que o filho perceba que ele não precisa se esforçar para agrada-la e que seus sentimentos são legítimos. A criança deve perceber que pode ser quem ela é, que é aceita na sua individualidade. Só isso lhe dará condições de relaxar e descobrir a vida.

No conto, há essa mulher que, por um motivo que não nos é dado saber, toma um de seus filhos como um objeto mau, estragado. Ela coloca o menino numa posição de onde ele, sozinho, não pode sair, mas também não pode responder, daí se move como um peixe, só que fora d’água, paralisa. Só lhe restar afundar-se no banco, na vida.

O estranho, nosso cúmplice observador da cena, tem o desejo de aproximar-se e, com suas palavras, salvar a criança, mostrar-lhe outra posição. “Você não é mau, é bom”, ele lhe diria. E lhe daria a moeda para que, através dela, o menino internalizasse bons objetos, objetos que lhe fariam, quando adulto, sobreviver aos desafios da vida.

Infelizmente, o nosso herói não é heroico. O seu impulso não se concretiza em ato e ele observa o garoto seguir a família que o destrói, em silêncio. Talvez ele mesmo, o narrador, também vítima de palavras que o desencorajaram.

O conto nos apresenta duas possibilidades de discurso, um que intoxica e outro que alimenta, nos faz atentar para o poder das palavras e ainda deixa uma importante reflexão: O que dizem de nós não deve nos definir. Como nos disse Freud: “Quando Pedro me fala de Paulo sei mais de Pedro do que Paulo”.



Segue o conto:



ASSASSINATO DA ALMA



De David Mamet
Tradução de Cristina Cupertino
Da revista Granta número 5

O garoto sentou-se com a cabeça apoiada nas mãos, balançando o corpo para a frente e para trás.
- …e se você não queria não deveria ter pedido- disse a mulher-, porque você não sabe o que significa merecer uma coisa, porque você não sabe o que e trabalhar para ter uma coisa.- Ela fez uma pausa.- Você sabe?
- O menino não ergueu o olhar. E parecia que a mulher não esperava que ele fizesse isso. Ela esfregou um olho durante um momento e enquanto fez isso sua boca ficou frouxa. O garoto continuou se balançando.
- -Mas- disse ela- quando chegarmos em casa você sabe o que é que eu vou fazer? Vou encaixotar todos os seus brinquedos . E despachar todos eles para bem longe. Você acha que eu estou brincando?
As outras duas crianças, pensou o homem deviam ser o irmão e a irmã. Continuavam olhando, não que estivessem sem interesse, mas com um ar distante.
Claro, pensou o homem. Se resolvessem intervir, o que eles diriam?

O garoto parou de se balançar, levantou-se do banco e começou a andar, pernas duras, cabisbaixo.
-Onde é que você está indo? - perguntou a mulher.
Com um olhar amedrontado ele levantou a cabeça para mostrar o seu destino- uma placa indicando o banheiro masculine, do outro lado das ala de espera.
-…e por que é que você sai assim? – perguntou a mulher.
-Eu estou falando com você! Por que é que você sai assim, pelo amor de Deus?
Por um momento a boca do menino movimentou-se como a de um peixe.
-Sente aí- disse ela-, e eu lhe digo quando quiser que você vá a algum lugar.
Ele ficou parado por um momento e depois se afundou no banco. Tinha a boca aberta e apertava os ouvidos com as mãos.
Abaixou a cabeça até logo acima dos joelhos e voltou a balançar o corpo.
A mulher se dirigiu aos outros dois. Aproximou deles a pilha de malas e falou-lhes brandamente.
É isso mesmo, pensou o homem. É isso mesmo.
Ela fez um gesto para as malas e apontou para eles e eles assentiram com a cabeça; em seguida fez um gesto para o banheiro e meneou a cabeça e então ela e depois eles olharam para o outro garoto. Ela se levantou rapidamente compôs-se e afastou-se animada.
As outras crianças dirigiram ao menino um olhar culpado e depois, decididas, ocupara-se com seus livros.

Bom, chegou a hora, pensou o homem, e imaginou: ele se aproximaria do garoto e se sentaria do lado dele.
-Você sabe quem eu sou?- diria ele. O garoto olharia para cima.- Eu sou o seu anjo da guarda. Mandaram que eu viesse aqui para lhe dizer isso: você não é mau, é bom. Está me entendendo? Você não é mau, é bom. Eu tenho pouco tempo, mas não se esqueça disso- diria ele.
Ah, o que eu lhe daria?, pensou ele e revistou os bolsos.
-Você deve guardar isso- diria ele.- É uma moeda mágica. Toda vez que você vir essa moeda, toda vez que a tocar, você vai lembrar como num passé de mágica que você não é mau, é bom. Você é bom, está me entendendo?
“Agora preste atenção: um dia você vai perder a moeda. Isso faz parte do plano. Quando isso acontecer significa que toda vez que vir qualquer moeda você vai se lembrar de que você é bom. “
Na sua fantasia o homem apertava a moeda na mão do menino e rapidamente se levantava e ia embora.
Ao terminar sua fantasia, ele viu a mulher saindo do banheiro e a viu voltar para os dois filhos bons e viu os tres sorrirem, levantarem-se e se organizarem em torno das malas, pega-las e começarem a andar. Enquanto eles se iam, ela lançou um olhar feroz para o garoto no banco dizendo:
-…e ai?
E o menino se levantou e foi atrás deles.




terça-feira, 27 de setembro de 2016

Fernanda Montenegro em "Viver Sem Tempos Mortos", de Simone de Beauvoir


Fernanda Montenegro interpreta Simone de Beauvoir, em "Viver sem tempos Mortos". Trecho em que a autora reflete sobre a importância do passado, e a igual importância de ultrapassá-lo, em nome da liberdade.

"Portanto, ao meu passado eu devo o meu saber e a minha ignorância, as minhas necessidades, as minhas relações, a minha cultura e o meu corpo. Que espaço o meu passado deixa pra minha liberdade hoje? Não sou escrava dele."






quinta-feira, 22 de setembro de 2016

Chopp, de Carlos Pena Filho



A condição humana é aventura e riqueza.

Há, em nós, o medo inconsciente de um gozo tão forte que nos faria desintegrar e que nos amarra, com laços fortes, no terreno da neurose. É por sermos neuróticos que capitulamos, tantas vezes, frente ao desejo. Nem sempre podemos suportar conseguir o que queremos.

O poema abaixo, de Carlos Pena Filho, ilustra muito bem o nosso paradoxo, esse tesouro de ausências, coleção de perdas que acumulamos, seres castrados e desejantes. Viver exige que se encontre o equilíbrio na corda bamba dos desejos.



CHOPP
Carlos Pena Filho

Na avenida Guararapes,
o Recife vai marchando.
O bairro de Santo Antonio,
tanto se foi transformando
que, agora, às cinco da tarde,
mais se assemelha a um festim,
nas mesas do Bar Savoy,
o refrão tem sido assim:
São trinta copos de chopp,
são trinta homens sentados,
trezentos desejos presos,
trinta mil sonhos frustrados.

Ah, mas se a gente pudesse
fazer o que tem vontade:
espiar o banho de uma,
a outra amar pela metade
e daquela que é mais linda
quebrar a rija vaidade.

Mas como a gente não pode
fazer o que tem vontade,
o jeito é mudar a vida
num diabólico festim.

Por isso no Bar Savoy,
o refrão é sempre assim:
São trinta copos de chopp,
são trinta homens sentados,
trezentos desejos presos,
trinta mil sonhos frustrados.



terça-feira, 13 de setembro de 2016

Pai e Mãe - Gilberto Gil




Em Aquarius, novo filme de Kleber Mendonça Filho, a canção Pai e Mãe de Gilberto Gil é tocada, longamente, numa das cenas. Essa canção é bastante psicanalítica já que defende que repetimos as primeiras relações de afeto no decorrer da vida, que beijamos outros homens como beijamos nosso pai. A importância dessas primeiras relações está no fato de serem inaugurais. Elas deixam marcas que apontam caminhos, caminhos que, como os do leito de um rio, tenderemos a repetir. Na canção, Gil manda recado ao próprio pai: "Diga a ele que eu, quando beijo um amigo, estou certo de ser alguém como ele é..."  É característica do psiquismo buscar o que lhe é conhecido. O amigo deve ser, como o pai do poeta, alguém amoroso e protetor. Foi essa a experiência que ele viveu e que se repete (porque ele a busca, a cria) nas suas outras relações de afeto. O filme de Kleber nos mostra a resiliência da escritora Clara, mediante ofertas e ameaças de uma construtora civil, que deseja derrubar o prédio onde ela vive para construir um espigão. É nesse contexto que surge "Pai e Mãe", de Gil, na tela. A canção nos remete à importância das origens, à coerência da trajetória de uma vida. Belíssima canção que, no filme, encanta essa personagem brilhantemente vivida por Sônia Braga, e que consegue equilibrar com tanta dignidade e vivacidade o passado, o presente e os desejos de futuro.