sexta-feira, 23 de dezembro de 2016

Elle, de Paul Verhoeven.



Freud dizia que para a mulher há três saídas do Édipo: tornar-se lésbica, tornar-se fálica, tornar-se mãe. Freud acreditava que a última saída era a mais eficiente. Um filho daria à mulher o falo que lhe falta, através de um filho a mulher poderia conhecer a plenitude. 
Michelle, personagem de Huppert em Elle, é um pouco lésbica, um pouco mãe e bastante fálica. O excelente filme de Paul Verhoeven nos mostra que um filho pode mesmo salvar uma mulher, que o homem que fere também é o homem que cuida, que o corpo da mulher está sempre exposto, desde a infância, à violência. Ao mesmo tempo, o filme nos mostra o quanto o filho pode ser uma decepção, o quanto o corpo feminino é poderoso, o quanto a mulher pode ser potente. São informações antagônicas que não se excluem, mas se somam. Exatamente como funciona o psiquismo. 
Outro grande trunfo do filme, a meu ver, é mostrar que o lugar do feminino e do masculino são preenchidos por discursos e que esses discursos podem ser proferidos tanto por um homem quanto por uma mulher. 
Sempre borrando as fronteiras entre o feminino e o masculino (e como essas posições se adequam nos corpos), Elle sugere que a metáfora de matar o pai com o intuito de fazer florescer a individualidade não é só tarefa do menino, como disse Freud, mas também da menina. Pelo menos dessa menina fálica que é Michelle. 
Paul Verhoeven cria uma obra extremamente complexa para mostrar que, no que se trata de sexualidade humana, muitas realidades, por vezes distintas, podem coexistir e que nada é simples. 





quinta-feira, 24 de novembro de 2016

Amor, questão de sobrevivência.


Nascemos em estado de total desamparo. Mais do que necessidades físicas, o bebê precisa fundar-se ser humano. 

E então ele balbucia qualquer coisa, faz um grunhido qualquer, e o cuidador (a mãe, geralmente) sentencia: ele quer isso, ou aquilo, ou aquilo outro. O bebê tem uma contração muscular no rosto, a mãe acha que ele está sorrindo. A mãe acredita que sabe o que o seu bebê quer, ou sente, porque está literalmente enlouquecida de amor por ele.

O processo pressupõe falhas, portanto "o que escapa entre a necessidade e a demanda é o desejo que anima o sujeito do inconsciente.Esse desejo provém da falha, da impossibilidade de que o outro o entenda totalmente ou mesmo que atenda totalmente sua demanda de amor inesgotável e, portanto, impossível de ser atendida", como nos diz Maria Anita Ribeiro.

Esse processo de investimento do cuidador vai auxiliar o recém-nascido a construir, paulatinamente, a sua independência no sentido de tornar-se indivíduo capaz de estabelecer relações e vínculos. O amor o impulsiona. 

Freud disse que ninguém é tão forte quanto alguém que tem certeza que é amado. Em outras palavras, quando alguém encontra "lá fora" um reflexo do amor que sente por si mesmo, quando o silêncio de um cuidador sussurra para a criança: sim, você vale a pena, a criança se fortalece. Nesse caso, o narcisismo da criança cresce como semente saudável, vira árvore frondosa, já pode até emprestar sua sombra às outras árvores. 

A humanidade do cuidador auxiliará o processo de humanização do bebê. E o que é ser humano? É estar inscrito na linguagem, tendo que lidar sempre com o desejo e com a falta. 

Ser humano é muito mais do que ter exigências biológicas satisfeitas, é estar sempre sujeito à própria subjetividade. Nesse sentido, pode-se dizer que na nossa espécie o amor é uma questão de sobrevivência. O bebê precisa de alguém que o cuide, que o deseje, que o espelhe. A isso chamo amor. 



sábado, 15 de outubro de 2016

O Lar das Crianças Peculiares


É possível abrir uma fenda no tempo, como sugere o filme “O Lar das Crianças Peculiares”, do diretor americano Tim Burton? No filme, para impedir que mísseis alemães atinjam a casa onde vivem, a senhorita Peregrine diariamente atrasa o tempo, mantendo a si e às crianças presas num mesmo dia. Para não sofrer os efeitos devastadores da bomba, ela e as suas crianças se condenam à prisão de um tempo que não passa.


A Srta. Peregrine quer proteger a sua casa, mas paga um preço alto por isso. O desejo de congelar o tempo num dia perfeito é bonito, mas não condiz com a vida.


A história de uma pessoa não é uma linha reta, mas é traçada por pontos de condensação que pulsam, que forçam a presença do passado no presente. O tempo do inconsciente se organiza em torno dos mísseis e vulcões que porventura nos atingiram. É preciso garantir a plasticidade dessa estrutura, que se modifica conforme é atravessada por objetos externos ou mediante o trabalho de uma análise, por exemplo.

A incapacidade de elaborar um luto paralisa. Seria esse o correspondente psíquico da fenda temporal do filme de Tim Burton?

O trabalho do luto é trabalho psíquico, o que significa que, diante da ausência do objeto, o aparelho psíquico deve reinvestir a libido num novo objeto, um objeto vivo, disponível. Se não pode realizar esse trabalho, o sujeito está condenado à prisão de um objeto que já não está e não pode mover-se.

É preciso chorar pelas casas perdidas e construir outras, sentir a dor da devastação, saber passar, saber atravessar os dias bons, os perfeitos, os imperfeitos e os bombásticos.




sexta-feira, 30 de setembro de 2016

O Assassinato da Alma



Antes mesmo de nascer, já há um desejo que nos aguarda. Muitas vezes já há um nome e expectativas. É comum ver o pai decidindo pelo filho qual o time de futebol que ele deverá torcer, por exemplo. Esse desejo sustentará fantasias e identificações infantis. É através do desejo dos pais que a criança poderá cavar um espaço para seu próprio desejo na vida. Como a criança é falada, isso a identifica.

No conto, O Assassinato da Alma, David Mamet nos apresenta um discurso materno que mata. O título é pungente e preciso. Para que a alma sobreviva e, mais importante, floresça, a sua existência deve ser tomada como uma coisa boa, válida, celebrada.

O conto se inicia com a mulher levantando a questão do merecimento do menino, desqualificando-o. Esse é o avesso do discurso de uma mãe suficientemente boa. A mãe suficientemente boa fará com que o filho perceba que ele não precisa se esforçar para agrada-la e que seus sentimentos são legítimos. A criança deve perceber que pode ser quem ela é, que é aceita na sua individualidade. Só isso lhe dará condições de relaxar e descobrir a vida.

No conto, há essa mulher que, por um motivo que não nos é dado saber, toma um de seus filhos como um objeto mau, estragado. Ela coloca o menino numa posição de onde ele, sozinho, não pode sair, mas também não pode responder, daí se move como um peixe, só que fora d’água, paralisa. Só lhe restar afundar-se no banco, na vida.

O estranho, nosso cúmplice observador da cena, tem o desejo de aproximar-se e, com suas palavras, salvar a criança, mostrar-lhe outra posição. “Você não é mau, é bom”, ele lhe diria. E lhe daria a moeda para que, através dela, o menino internalizasse bons objetos, objetos que lhe fariam, quando adulto, sobreviver aos desafios da vida.

Infelizmente, o nosso herói não é heroico. O seu impulso não se concretiza em ato e ele observa o garoto seguir a família que o destrói, em silêncio. Talvez ele mesmo, o narrador, também vítima de palavras que o desencorajaram.

O conto nos apresenta duas possibilidades de discurso, um que intoxica e outro que alimenta, nos faz atentar para o poder das palavras e ainda deixa uma importante reflexão: O que dizem de nós não deve nos definir. Como nos disse Freud: “Quando Pedro me fala de Paulo sei mais de Pedro do que Paulo”.



Segue o conto:



ASSASSINATO DA ALMA



De David Mamet
Tradução de Cristina Cupertino
Da revista Granta número 5

O garoto sentou-se com a cabeça apoiada nas mãos, balançando o corpo para a frente e para trás.
- …e se você não queria não deveria ter pedido- disse a mulher-, porque você não sabe o que significa merecer uma coisa, porque você não sabe o que e trabalhar para ter uma coisa.- Ela fez uma pausa.- Você sabe?
- O menino não ergueu o olhar. E parecia que a mulher não esperava que ele fizesse isso. Ela esfregou um olho durante um momento e enquanto fez isso sua boca ficou frouxa. O garoto continuou se balançando.
- -Mas- disse ela- quando chegarmos em casa você sabe o que é que eu vou fazer? Vou encaixotar todos os seus brinquedos . E despachar todos eles para bem longe. Você acha que eu estou brincando?
As outras duas crianças, pensou o homem deviam ser o irmão e a irmã. Continuavam olhando, não que estivessem sem interesse, mas com um ar distante.
Claro, pensou o homem. Se resolvessem intervir, o que eles diriam?

O garoto parou de se balançar, levantou-se do banco e começou a andar, pernas duras, cabisbaixo.
-Onde é que você está indo? - perguntou a mulher.
Com um olhar amedrontado ele levantou a cabeça para mostrar o seu destino- uma placa indicando o banheiro masculine, do outro lado das ala de espera.
-…e por que é que você sai assim? – perguntou a mulher.
-Eu estou falando com você! Por que é que você sai assim, pelo amor de Deus?
Por um momento a boca do menino movimentou-se como a de um peixe.
-Sente aí- disse ela-, e eu lhe digo quando quiser que você vá a algum lugar.
Ele ficou parado por um momento e depois se afundou no banco. Tinha a boca aberta e apertava os ouvidos com as mãos.
Abaixou a cabeça até logo acima dos joelhos e voltou a balançar o corpo.
A mulher se dirigiu aos outros dois. Aproximou deles a pilha de malas e falou-lhes brandamente.
É isso mesmo, pensou o homem. É isso mesmo.
Ela fez um gesto para as malas e apontou para eles e eles assentiram com a cabeça; em seguida fez um gesto para o banheiro e meneou a cabeça e então ela e depois eles olharam para o outro garoto. Ela se levantou rapidamente compôs-se e afastou-se animada.
As outras crianças dirigiram ao menino um olhar culpado e depois, decididas, ocupara-se com seus livros.

Bom, chegou a hora, pensou o homem, e imaginou: ele se aproximaria do garoto e se sentaria do lado dele.
-Você sabe quem eu sou?- diria ele. O garoto olharia para cima.- Eu sou o seu anjo da guarda. Mandaram que eu viesse aqui para lhe dizer isso: você não é mau, é bom. Está me entendendo? Você não é mau, é bom. Eu tenho pouco tempo, mas não se esqueça disso- diria ele.
Ah, o que eu lhe daria?, pensou ele e revistou os bolsos.
-Você deve guardar isso- diria ele.- É uma moeda mágica. Toda vez que você vir essa moeda, toda vez que a tocar, você vai lembrar como num passé de mágica que você não é mau, é bom. Você é bom, está me entendendo?
“Agora preste atenção: um dia você vai perder a moeda. Isso faz parte do plano. Quando isso acontecer significa que toda vez que vir qualquer moeda você vai se lembrar de que você é bom. “
Na sua fantasia o homem apertava a moeda na mão do menino e rapidamente se levantava e ia embora.
Ao terminar sua fantasia, ele viu a mulher saindo do banheiro e a viu voltar para os dois filhos bons e viu os tres sorrirem, levantarem-se e se organizarem em torno das malas, pega-las e começarem a andar. Enquanto eles se iam, ela lançou um olhar feroz para o garoto no banco dizendo:
-…e ai?
E o menino se levantou e foi atrás deles.




terça-feira, 27 de setembro de 2016

Fernanda Montenegro em "Viver Sem Tempos Mortos", de Simone de Beauvoir


Fernanda Montenegro interpreta Simone de Beauvoir, em "Viver sem tempos Mortos". Trecho em que a autora reflete sobre a importância do passado, e a igual importância de ultrapassá-lo, em nome da liberdade.

"Portanto, ao meu passado eu devo o meu saber e a minha ignorância, as minhas necessidades, as minhas relações, a minha cultura e o meu corpo. Que espaço o meu passado deixa pra minha liberdade hoje? Não sou escrava dele."






quinta-feira, 22 de setembro de 2016

Chopp, de Carlos Pena Filho



A condição humana é aventura e riqueza.

Há, em nós, o medo inconsciente de um gozo tão forte que nos faria desintegrar e que nos amarra, com laços fortes, no terreno da neurose. É por sermos neuróticos que capitulamos, tantas vezes, frente ao desejo. Nem sempre podemos suportar conseguir o que queremos.

O poema abaixo, de Carlos Pena Filho, ilustra muito bem o nosso paradoxo, esse tesouro de ausências, coleção de perdas que acumulamos, seres castrados e desejantes. Viver exige que se encontre o equilíbrio na corda bamba dos desejos.



CHOPP
Carlos Pena Filho

Na avenida Guararapes,
o Recife vai marchando.
O bairro de Santo Antonio,
tanto se foi transformando
que, agora, às cinco da tarde,
mais se assemelha a um festim,
nas mesas do Bar Savoy,
o refrão tem sido assim:
São trinta copos de chopp,
são trinta homens sentados,
trezentos desejos presos,
trinta mil sonhos frustrados.

Ah, mas se a gente pudesse
fazer o que tem vontade:
espiar o banho de uma,
a outra amar pela metade
e daquela que é mais linda
quebrar a rija vaidade.

Mas como a gente não pode
fazer o que tem vontade,
o jeito é mudar a vida
num diabólico festim.

Por isso no Bar Savoy,
o refrão é sempre assim:
São trinta copos de chopp,
são trinta homens sentados,
trezentos desejos presos,
trinta mil sonhos frustrados.



terça-feira, 13 de setembro de 2016

Pai e Mãe - Gilberto Gil




Em Aquarius, novo filme de Kleber Mendonça Filho, a canção Pai e Mãe de Gilberto Gil é tocada, longamente, numa das cenas. Essa canção é bastante psicanalítica já que defende que repetimos as primeiras relações de afeto no decorrer da vida, que beijamos outros homens como beijamos nosso pai. A importância dessas primeiras relações está no fato de serem inaugurais. Elas deixam marcas que apontam caminhos, caminhos que, como os do leito de um rio, tenderemos a repetir. Na canção, Gil manda recado ao próprio pai: "Diga a ele que eu, quando beijo um amigo, estou certo de ser alguém como ele é..."  É característica do psiquismo buscar o que lhe é conhecido. O amigo deve ser, como o pai do poeta, alguém amoroso e protetor. Foi essa a experiência que ele viveu e que se repete (porque ele a busca, a cria) nas suas outras relações de afeto. O filme de Kleber nos mostra a resiliência da escritora Clara, mediante ofertas e ameaças de uma construtora civil, que deseja derrubar o prédio onde ela vive para construir um espigão. É nesse contexto que surge "Pai e Mãe", de Gil, na tela. A canção nos remete à importância das origens, à coerência da trajetória de uma vida. Belíssima canção que, no filme, encanta essa personagem brilhantemente vivida por Sônia Braga, e que consegue equilibrar com tanta dignidade e vivacidade o passado, o presente e os desejos de futuro.